Quanto tempo o tempo tem? Uma reflexão agostiniana.
Entre a eternidade e o instante: como Agostinho nos ajuda a pensar o tempo
Você já tentou explicar o tempo para alguém? À primeira vista, parece uma tarefa fácil, porque logo pensamos nas horas do relógio, nos meses do calendário, nas estações do ano… Porém, essas são formas que usamos para medir o tempo. Se a gente fosse dar uma definição do que é o tempo (a não ser que você seja um físico), talvez caíssemos na mesma dificuldade que Agostinho caiu:
O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei. (Confissões, XI.14.17)
É a partir dessa inquietação que ele inicia uma das mais instigantes reflexões filosófico-teológicas sobre o tempo. E, como acontece nas boas perguntas filosóficas, o caminho que se percorre diz mais do que as respostas a que se chega.
A criação, a eternidade e a origem do tempo
Agostinho, que era um cristão, começa com uma provocação interessante: “O que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?”
Se você, como eu, foi uma criança com família cristã, é provável que tenha feito essa pergunta, também. Assim como a pergunta do tempo, essa é uma que parece simples, mas carrega um problema de fundo: ela assume que existe um “antes” para Deus, como se ele estivesse submetido ao tempo. E sabemos que, na concepção cristã, Deus é eterno.
Para Agostinho, portanto, Deus não existe no tempo, pois é anterior a ele. O tempo, segundo Agostinho, é uma criatura de Deus, ou seja, um efeito da criação. A eternidade divina, portanto, não pode ser pensada com os mesmos marcos que usamos para medir passado, presente e futuro.
E aqui, querido leitor, permita-me dizer que meu foco não é a teologia ou a fé cristã, mas o raciocínio profundamente filosófico que Agostinho desenvolve a partir desse problema religioso. Dito isso, sigamos…
Memória, percepção e imaginação do tempo
Uma vez proposto que o tempo é uma criatura de Deus, Agostinho começa a questionar a própria existência do tempo: o que ele é? Como entender suas divisões? Pois, como se pode pensar no passado ou no futuro se eles não existem? Como o presente sucede do passado, se este já não existe? E mais: como dizemos que medimos o tempo se o passado e o futuro não existem? Como dizer que qualquer tempo é longo ou breve, se não podemos medi-lo?
(Eu sei, também fiquei zonza quando li esse texto pela primeira vez e pensei nas questões que ele levanta.)
A saída de Agostinho é recomendar que se divida o tempo até que se chegue a uma ínfima partícula que não possa ser dividida em passado e futuro. A essa partícula ele chama de presente, considerando que só ela, de fato, existe e, por conseguinte, pode ser medida.
Quanto ao que todos nós aprendemos desde crianças (que há passado, presente e futuro), ele diz que existem fatos passados que são gravados na memória, pois deixam vestígios no espírito. Esses fatos não existem, mas a imagem deles, formada na memória, é evocada quando lembramos. As coisas futuras não existem também, mas as prevemos “pelas coisas presentes que já existem e se deixam observar” (Confissões, XI.18.24), ou seja, fazemos previsões com base em constantes no presente.
Com isso, ele propõe que uma redefinição radical do que entendemos pelo tempo: apenas o tempo presente existe.
🗣 E o passado?, você perguntaria a Agostinho.
Não existe passado, porque ele já se foi. Existe o presente do passado, o resgate dos fatos acontecidos que a nossa memória realiza quando relembramos de algo ou entramos em contato com a memória coletiva preservada nos livros, filmes e outros artefatos.
🗣 E o futuro?
Adivinha? Também não existe! Mas nós o trazemos para o hoje, viajando através das expectativas e criando o presente do futuro.
🗣 E o que é o presente, afinal?
Presente é atenção, é presença, é estar inteiro no agora, entendendo que o tempo não é algo que acontece “fora” de nós. Ele acontece na alma, e não é medido por relógios, mas pela consciência que temos da mudança.
Faz sentido pra você? Se quiser, me conta nos comentários do Substack.
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